sábado, 29 de setembro de 2012

127º CAFÉ FILOSÓFICO - RESPEITAR O SILÊNCIO





Café Filosófico no Yoga sobre o Porto - Respeitar o Silêncio

"Respeitar o Silêncio" é um exercício de Diálogo Filosófico de inspiração monástica em que se recorre ao silêncio, imposto ao grupo através de uma regra muito simples, para atenuar os efeitos emocionais que algumas intervenções e atitudes muito comuns num Diálogo costumam suscitar nos participantes.
Todos nós já vimos alguém reagir a uma crítica a uma ideia sua como se de um ataque pessoal se tratasse e é até bastante provável que o leitor já tenha sentido algumas vezes esse incómodo em ser criticado pelos outros. 
Normalmente essa reacção quase compulsiva costuma espoletar no sujeito (em nós e nos outros) uma procura de razões com o único propósito de "blindar" o melhor possível a sua posição. No entanto, se quisermos ser intelectualmente honestos, o contrário é que deve acontecer: primeiro devemos pensar nas razões a favor e contra uma determinada posição, procurar outros pontos de vista além do nosso, formas alternativas de solucionar o problema, por outras palavras, uma melhor compreensão global do problema. Só depois deste esforço honesto de compreensão é que nos é legítimo ligar-mo-nos emocionalmente a uma determinada linha de acção ou argumento. Mesmo que aquela a não seja, afinal, a mais correcta, ou o nosso argumento não seja o melhor argumento, pelo menos agimos da melhor forma que a razão nos aconselha: analisando os dados, escutando vários argumentos e pontos de vista, etc.

Essa reacção a quente às críticas que nos são feitas e a racionalização (procura de razões para defender a nossa posição) que a ela se segue são autênticos obstáculos ao Diálogo que importa anular para que aquilo que vai sendo dito ao longo do Diálogo seja devidamente interiorizado e analisado por todos e não apenas superficialmente ouvido (e não "escutado" que já implica compreensão) com o único intuito de rapidamente se rejeitar e contra-argumentar sem ter em conta toda a dimensão do problema. 
Para não cair naqueles tão comuns "debates de surdos" (discussões políticas, conversas de café, conversas da treta, etc.) quem quer dialogar deve saber encontrar um determinado ritmo de calma, ponderação e rigor lógico próprios de uma verdadeira "conversa filosófica", onde as intervenções de todos os participantes são devidamente pesadas e pensadas e onde todos os ângulos de um problema ou hipótese são aprofundados. 

Num Diálogo Filosófico as palavras não servem para nos expressarmos, agradar os outros ou passar o tempo. Num Diálogo Filosófico as palavras servem para pensar e, com essa função em vista, devem ser tratadas como "instrumentos de precisão", afiados e precisos, que temos o dever de estimar e apreciar usando-os apenas quando estritamente necessário. 

Como numa joalharia onde o ouro sobressai melhor sobre um fundo preto num Diálogo as palavras sobressaem melhor sobre um fundo de silêncio.  
A regra de "respeitar o silêncio" imposta por este exercício faz com que as palavras ganhem esse peso extra que é o peso da responsabilidade dos participantes em não "desrespeitar o silêncio" de todos. Essa regra permite, ainda, que sejam os próprios participantes a marcar o ritmo geral do Diálogo que ganha assim uma dimensão ao mesmo tempo interior e comunitária, subjectiva e objectiva, dispensando dessa forma qualquer regulação "maquínica" de um tempo cronológico, o tempo do relógio, que é sempre um factor estranho ao tempo do pensamento.


Objectivos: 
- Compreender melhor os vários momentos e ritmos presentes num diálogo assim como as várias resistências que cada participante leva consigo para o diálogo com os outros. 
- Aprofundar em grupo o processo de pensamento.
- Sentir o peso real que as palavras e as ideias têm quando encontram como pano de fundo o silêncio e não a habitual cacofonia interior e exterior que normalmente levamos connosco para todo o lado, inclusive para o Diálogo.


Exercício:

1) Antes de começar este exercício filosófico todos os participantes do diálogo devem tirar os relógios para que sintam o tempo de uma forma intuitiva e directa (i.e., não mediada por um aparelho medidor de tempo como o relógio).

2) É feita uma pergunta ao grupo, é-lhe pedido um comentário a uma frase, uma definição de um conceito, um conselho para um determinado problema, a resolução de um dilema, etc.

3) Qualquer um pode iniciar o Diálogo quando quiser e não há necessidade de se colocar o dedo no ar desde que todos respeitem a vez dos outros falarem. 

4) Sempre que um dos participantes fala há que respeitar um intervalo de silêncio que deve durar o mesmo tempo que este demorou a falar. Assim, se alguém falar durante 2 minutos todo o grupo deve respeitar mais 2 minutos de silêncio até que alguém possa voltar a tomar a palavra.

5) Um dos participantes é escolhido pelo moderador no início da sessão (pode ser o mais novo, o normalmente mais falador, etc.) para ficar calado durante todo o tempo que durar o Diálogo (cerca de 30 minutos) e ouvir atentamente as intervenções dos outros participantes. No fim deverá produzir uma síntese do que se falou, fazer uma análise crítica do Diálogo e contar ao grupo o que aprendeu com esse período em que foi obrigado a estar calado. 
Normalmente este é o lugar mais recompensador do Diálogo pois é aquele que permite um olhar mais objectivo sobre o mesmo. Aquele que mais se aproxima do "ponto de vista de Deus" que, segundo Espinosa, seria o lugar por excelência da Filosofia

Nota: Durante todo o exercício o moderador não deverá nunca intervir mas apenas controlará o tempo do exercício (não deixar passar muito tempo estipulado no início) e terá particular atenção aos vários obstáculos que vão surgindo ao diálogo, às mudanças de ritmo do mesmo, aos vários tipos de intervenções que forem surgindo (argumentos, perguntas, asserções, máximas, definições, etc.), à ligação (ou inexistência dela) entre as várias intervenções, aos conceitos mais importantes que forem surgindo. No fim do Diálogo e após o "participante silencioso" falar poderá, se quiser, dar conta dessas suas observações ao grupo com o objectivo de ligar e reconciliar os vários participantes sempre consciente de que a sua principal função é trabalhar para que o grupo se torne cada vez mais autónomo e a sua presença enquanto moderador seja cada vez mais dispensável.  

O texto que aqui vos deixo é da lavra da Chantal G. que participou neste Café Filosófico e que, segundo nos confessou, ficou bastante marcada por esta vivência interior do tempo do silêncio. Como todos nós, aliás.



Alice no País do não tempo



Queria um bilhete por favor. Ida simples.
O seu bilhete é com ou sem silêncio?
Quando vi, pouco depois, o comboio parar na estação da minha
imaginação, percebi a pergunta.
Subi e sentei-me, de pernas cruzadas, numa das carruagens, com mais
uma dúzia de pessoas.
O sino da realidade tocou então 22h00 e o comboio partiu.
A partir desse instante, perdemos a noção do tempo. Paragens, só mesmo
no ritmo do diálogo.
Torna-mo-nos recolectores, de falas e de silêncios, em sistema de troca directa.
Assumo que gosto de falar. Assumo que gosto de estar calada. Assumo
que sentir o silêncio, sem tic's nem tac's é um desafio.
O disfarçado letreiro «a minha verdade não é a tua verdade», na
estação de partida, tinha um propósito bem claro: agarrem-se a mim ou
abandonem-me pelo caminho.
Olhei para o bilhete da minha vontade e reparei que não tinha sido
obliterado. Posso fazer o que quiser, pensei.
À medida que o tempo sem tempo ia passando, as movimentações na nossa
carruagem fizeram-se sentir. Apenas o Filipe, o nosso «monge mais
novo» teve de permanecer quieto, excepto em pensamento.
Dado que estava fora do prazo de validade reservado aos monges, fui
espreitando as outras realidades, as das carruagens ao lado. Pelos
corredores de união, um fluxo migratório de pensamentos mais ou menos
persistentes.
Fui ouvindo...não existe uma só verdade? verdade será o mesmo que
realidade? pelo menos um de nós está errado. estará errado perante a
verdade do outro? é possível eu ter uma verdade? nós fazemos
aproximações à verdade mas ela existe. será que não vivemos na
verdade? a verdade pode ser factual ou emocional. na história existe
uma verdade. qual? a dos factos. individual ou colectiva? os dois. são
factos. um facto não é uma interpretação? há uma interpretação mas
também há o facto em si. uma interpretação não é uma verdade? é a tua
verdade. absoluta ou relativa? será mesmo verdade? relativa se for uma
verdade emocional e absoluta de for uma verdade factual. existem
verdades relativas e uma verdade absoluta. essa é uma verdade relativa
ou uma absoluta? a verdade é egocêntrica. a história não é
egocêntrica.  quem tem a verdade da história? de certeza que uma das
verdades está correcta. uma mentira pode ser verdade? a certeza de uma
verdade pelo menos não é uma mentira? pode ser. se eu estiver convicto
da verdade, porque não a hei de impor a outra pessoa? porquê impor? há
algo acima da verdade? o tempo. o espaço. em vez de impor, podes
persuadir. a verdade é infinita? se o tempo for infinito, a verdade
será infinita. a verdade e o amor são infinitos. as verdades causam
catástrofes sociais. por vezes a verdade é o pior caminho. a  verdade
nunca está em posse de ninguém. mas podes dizer «eu sou a verdade»,
como Jesus. a verdade é uma crença. a verdade é um privilégio. a
verdade dói. em que sentido? (neste momento fomos visitados pelo
riso...) quando chocar com as necessidades emocionais dos sujeitos.
mas aí estás a presumir que a tua verdade não é a do outro e que a tua
verdade é a absoluta. a verdade semeia-se ou colhe-se? as duas coisas.
(fomos de novo visitados pelo riso...) a verdade é efémera. é efémera
mas é eterna. isso não é contraditório? não, se se pensar na verdade
universal. é efémera nas verdades relativas.
Depois do tchu, tchu, o chiuuuu. Falou o nosso monge, através de impressões:
- o tempo de silêncio excedeu o tempo de fala;
- muitas perguntas foram respondidas com outras perguntas;
- houve um desvio face à pergunta inicial (o letreiro disfarçado);
- existiram dois momentos: o da verdade factual ser diferente da
emocional e o facto da verdade ser egocêntrica.
Novo recolhimento do nosso monge e mais fluxos migratórios entre
carruagens. Assumo que me portei mal. Comprei bilhete com silêncio e
tive duas ânsias de fala.
Assumo que gosto de falar. Assumo que gosto de estar calada. Assumo
que sentir o silêncio, sem tic's nem tac's me deixou a pensar.
Saí, a custo, do comboio e vi as carruagens partir.


Chantal

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